quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Cândido Portinari / Luciano Cortopassi


Tarde da noite, o garoto de apenas quinze anos entra na pensão onde trabalha em troca de uns poucos níqueis e onde, por consideração, o deixam dormir em algum canto, com a condição de que não perturbe o sossego dos hóspedes. Vinha de retorno de suas aulas de pintura no Liceu de Artes e Ofícios e tudo o que queria era algo com que matar a fome.

     De dentro de seu alforje, tira um pouco da gelatina que, na escola, é distribuída aos alunos para mesclar às tintas, dando-lhes a consistência necessária. Do que sobrou, o menino trouxe um pouco para casa, colocou ao fogo e, juntando ao pão duro e amanhecido, fez sua última refeição.

      Havendo iludido seu estômago com essa estranha mistura, foi a um dos banheiros da casa, colocou no chão algumas tábuas, jogou sobre elas um colchão de crina e deitou-se.

     Estava encerrado mais um dia de luta. No dia seguinte, a rotina seria a mesma. Ao deixar a família no distante interior paulista, para vir sozinho ao Rio de Janeiro estudar pintura, Candinho nem por sombra imaginava as agruras por que teria de passar.

     Mas um dia tudo deveria melhorar, tinha certeza disso. E nessa confiança adormeceu, refazendo as forças para a jornada de um novo dia e, à noite, para o reencontro com pincéis, telas e sonhos.

Pintando estrelas,
construiu um sonho

     Candido Portinari nasceu em Brodowski, próximo a Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, em 29 de dezembro de 1903. Seus pais tinham vindo do nordeste da Itália para «fazer a América» mas, tarde demais, descobriram que a realidade do imigrante não era aquele devaneio criado pela propaganda dos contratadores de imigração.

      Trabalhando de sol-a-sol, com salários minguados e uma forte concorrência, o desiludido imigrante podia agradecer aos céus por conseguir, mal e mal, dar abrigo e alimentação à numerosa família. Eram quinze ao todo: O casal e mais treze filhos que, na idade em que deveriam estar brincando, já participavam com seu esforço no sustento da casa.

     Não, não era o que hoje se costuma rotular de «exploração ao trabalho infantil». Era, sim, a única opção de sobrevivência, a linha crítica entre a vida e a morte. Ou trabalhavam todos, ou estavam todos condenados à morte, ou pela fome, ou pela tuberculose. Trabalhar, pois, era a garantia de vida, ainda que na miséria.

     Aos nove anos, Candinho já havia conseguido seu primeiro emprego como ajudante junto a artistas italianos que restauravam a pintura na igreja em Brodowski. Explicando-lhe as técnicas elementares, os pintores o ensinaram a refazer as estrelas, que eram a parte mais simples do conjunto.

     As estrelas iluminaram seu caminho, construiram um sonho bonito e inspirador. Havia de ser pintor, também. E como lhe dissessem que a rota da fama e da prosperidade passa obrigatoriamente pelo Rio de Janeiro, durante três anos juntou dinheiro, o suficiente para chegar até a capital federal, onde o encontramos na maior penúria, mas confiante do futuro que o destino lhe reservara.

Entre pedras e rosas

     Em 1918, Portinari estudava pintura no Liceu de Artes e Ofícios. Em 1921, finalmente, conseguiu ingressar na Escola Nacional de Belas-Artes, para um curso avançado.

     Se era carente de recursos materiais, não faltaram a Portinari grandes mestres que iriam orientar sua vida, dando a ela sentido e direção: estudou desenho com Lucílio de Albuquerque (marido de Georgina); aprendeu pintura com Rodolfo Amoedo e João Batista da Costa. Viveu o ambiente da Academia, convivendo com futuros artistas, respirando arte e abrindo, ainda que com extrema dificuldade, a larga estrada que o conduziria ao futuro.

     Em 1920, vendeu sua primeira tela, Baile na Roça; em 1922, expôs no Salão Nacional de Belas-Artes, sendo completamente ignorado. Mas em 1923, voltando à exposição com outro quadro, recebeu a medalha de bronze e um pequeno prêmio em dinheiro, apenas como estímulo.

     Nos Salões seguintes conseguiu primeiro a medalha de prata e depois a grande medalha de prata. E, o que é melhor, passou a ser notado pelos críticos, recebendo de Flexa Ribeiro palavras de estímulo:

     «De seu sentimento, muito devemos esperar: alguma coisa da alma florentina tenta renascer nesse adolescente que é, desde já, um espiritualista.»

A viagem, o casamento,
a nova vida

    O ano de 1928 selou sua sorte, quando ganhou o ambicionado prêmio de viagem, que lhe permitiu visitar França, Itália, Inglaterra e Espanha, voltando para o Brasil ao fim de dois anos.

     O resultado de sua viagem pareceria, a quem o visse, decepcionante. Em dois anos, pintara apenas três pequenas naturezas-mortas. Só isso e nada mais.

     Todavia, o ano de 1930, marcou uma virada em sua vida. Primeiro, casou-se com Maria Vitória Martinelli, uma uruguaia que viria ser, para todo o sempre, o esteio de sua carreira. Segundo, com a bagagem cultural adquirida durante a viagem, passou a pintar desenfreadamente, por vezes até um quadro a cada dia.

     Aos poucos, vai se desfazendo da tutela da Academia, sua arte ganha fluidez e liberdade e, em 1931, já se faz notado no Salão Revolucionário, onde sua obra, eclética e extensa, é bem recebida tanto pelos acadêmicos como pelos precursores da arte moderna.

     Na Escola Nacional de Belas-Artes, assumia Lúcio Costa, com o propósito de abrir os horizontes daquela instituição. O Brasil vivia o encantamento da 2ª República, iniciada em 1930 e o   governo revolucionário, precisando construir edifícios para acomodar a nova estrutura do poder, passou a procurar artistas com idéias avançadas no tempo.

     Durante todo o período do Estado Novo, depois de uma curta e frustrada experiência como professor de pintura, Portinari vai conseguindo encomendas oficiais uma após outra: no Ministério da Educação, no pavilhão brasileiro da Feira Mundial em Nova York, na biblioteca do Congresso em Washington etc., etc. Por fim, a convite do prefeito de Belo Horizonte, Juscelino Kubitschek, trabalha no controvertido projeto da Igreja de São Francisco, no complexo arquitetônico de Pampulha.

     Portinari confiou no futuro, trabalhou arduamente, e o futuro virou presente.

Esposa, companheira
e marchand

     Se bem sabia pintar, Portinari não tinha jeito algum para o comércio de seu trabalho e em breve sua esposa Maria assumiu os negócios para evitar que o pintor doasse seus quadros ou os vendesse por valores simbólicos. E ela o fazia com determinação, para marchand nenhum pôr defeito, conforme episódio contado por Deocélia Viana, viuva do radionovelista Oduvaldo Viana:

     «Oduvaldo foi ao Rio com o intuito de adquirir um quadro de Candido Portinari, seu velho amigo. Candido tinha um nome adequado. Aquele seu jeito provinciano, ar ingênuo e de uma candura enorme. Ficou feliz de ver Oduvaldo. (...)

     «Meu marido explicou o que queria e Cândido levou-o a ver seus quadros. Oduvaldo escolheu um lindíssimo, As Lavadeiras. (...) Veio a Maria para fechar o negócio. (...) E ficou combinado que pediriam ao Modesto de Sousa, velho e grande ator, que apanhasse o quadro e o mandasse para São Paulo. (...)

     «Oduvaldo voltou e, uns quinze dias depois, Modesto de Sousa foi buscar o quadro. "E o dinheiro?," perguntou Maria. "Oduvaldo ficou de remeter," respondeu ele. "Bom, depois que o dinheiro chegar, você leva o quadro."

     «Oduvaldo se queimou, ficou furioso, não mandou o dinheiro, porque era um desaforo a Maria duvidar dele e, por uma bobagem, ficamos sem o quadro do grande Portinari.»

Vida, paixão e morte

     Seu primeiro encanto foi o nascimento do único filho, João Cândido, em 1939. O intenso trabalho, que incluía três painéis para o pavilhão brasileiro na feira internacional em Nova York, não o impediam de viver a vida familiar.

     Através dos anos, entre telas, murais, pincéis e tintas, havia tempo de sobra para manter-se ligado à família, mulher e filho, com um vínculo indissolúvel, tão indissolúvel como sua paixão pela arte.

     Mas em 1954, começa a sentir o efeito do contato diuturno com as tintas. O médico lhe diz que está com uma dose anormal de chumbo no organismo e, para evitar uma contaminação maior, deve abandonar por completo a pintura a óleo ou similares.

     Portinari tenta partir para outras técnicas, usando até lápis de cor e caneta a tinteiro, numa mistura de desenho com pintura, mas sente-se reprimido, impedido de liberar por inteiro suas emoções e sua capacidade artística

     Em 1960, um novo ser vem povoar sua vida: a pequena Denise, filha de João Candido, que ele passa a cantar em prosa em verso. Delicia-se com seus primeiros passos suas primeiras palavras, transforma-a em modelo de suas novas criações.

     Contrariando determinações médicas, volta a usar o óleo para retratar sua neta, para a qual pinta pelo menos um quadro por mês.

     O médico estava certo. O retornou às tintas aumentou o grau de contaminação do organismo, debilitando de vez sua saúde. E Cândido Portinari vem a falecer em 6 de fevereiro de 1962, aos 58 anos de idade, no auge da fama, consagrado, no Brasil e no mundo, como um dos maiores pintores do Século 20.












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