sábado, 15 de setembro de 2012

A Arte

Se o artista é tomado por um desejo de realização do Belo a partir de sua interioridade, na qual, um objeto se eleva à paradigma da Beleza , é porque não há freios nesta experiência, vivida de fato, que o impeçam de justificar seu propósito artístico.

E assim, o ímpeto criador encontra seu curso livre para a realização da obra, mesmo que ela retenha apenas a Ilusão de ser o objeto que lhe dá um sentido aparente, pois, tanto quanto o Mito, a obra só alcança seu significado verdadeiramente na representação de si mesma, por mais que isto pareça impossível ao olhar leigo.

Só há sentido na criação, quando a Ilusão a que o artista está acometido, suspende seu domínio lógico, ou seja, quando as bases de sua realidade ordinária, da objetividade intrínseca que fundamenta sua razão, se sublimam ante o que é extraordinário, assim alargando, por assim dizer, os limites da noção de realidade.

Daí, dizermos que o domínio da Arte é autônomo, e sua lógica - se é que este termo é o adequado para isto - consiste em algo mais do que o possível e o impossível, aquilo que instaurando novas bases, cria o meio e a forma da realidade inefável tal como o paradigma da realidade.

A autonomia do artista está justamente em sua utopia, neste sonho e desejo de realizar a tradução desse universo inefável para uma linguagem compreensível à razão, porém, quando o faz, ela fala numa língua liberta de meios exclusivos, e ultrapassa todo e qualquer senso comum. E desta forma, mais do que traduzir seu desejo, o artista constitui uma linguagem perfeita, porque sua forma é universal por excelência, seu discurso visa e deve atender a necessidades independentes de quaisquer fatores culturais, políticos, filosóficos ou religiosos, dizendo seu conteúdo a todos que a contemplem. É neste sentido que se identifica com o Mito, porque ao atingir este poder de Iludir, continua representativa e significativa indefinidamente no tempo.

Temos portanto, que é na Arte que a dimensão extraordinária se manifesta abertamente.

Isto ocorre porque esta é a natureza da Arte. A Obra de Arte verdadeira é uma realidade perfeita em si mesma, independente da autoria, da data ou da técnica escolhida para sua materialização.

Manifesta no mundo, ela torna-se potência pura, inesgotável em seu poder de indução. Trata-se da realização de um Cosmo, que atravessa os limites da fugacidade sensorial e se instala na matéria e na consciência, trazendo para o plano real, as idéias de eternidade, imortalidade e universalidade. Nesse sentido é que a Arte é a manifestação da Beleza Suprema, é nela que o espírito humano busca o que lhe sobrepassa e ao mesmo tempo lhe confere uma distinção entre todos os outros animais.

No entanto, a Arte revela este poder de persuasão através da Ilusão, porque despida de seu significado emocional, reduz-se a matéria amorfa. Não há Arte que resista em seu esplendor total quando posta à indiferença e mediocridade humanas. Restará apenas uma sombra sem um corpo que lhe justifique, e o mesmo se pode dizer daquele que desce até onde a luz da obra de Arte não pode lhe alcançar.

De fato, a comunicação de um conteúdo através da Obra, só pode se dar plenamente quando os fatores culturais colaboram para isto. De modo que, o mesmo conteúdo seja lido por povos distintos, sob formas distintas, ou até mesmo, anulado em sua integridade, quando ela não encontra similitude no seio da sociedade.

Não podemos desprezar as diferenças entre a percepção de civilizações ancestrais diante do objeto de Arte moderno, como ocorre com os povos indígenas isolados da cultura branca - caso dos aborígenes australianos ou dos ianomamis do norte da América do Sul - diante do quais, a foto de uma paisagem, não representa mais do que um pedaço de papel colorido, e jamais “alguém ou uma paisagem”; reagem distanciando-se largamente da noção moderna do que é uma reprodução de espaço e tempo, fato que nos chega de imediato devido a formação cultural que nos dá bases para isto.

Por outro lado, a despeito desse caso específico, há casos em que as barreiras culturais não impedem o fenômeno da Ilusão, e este é o nosso interesse.

É exatamente quando os limites da cultura cessam sua influência sobre a apreensão do conteúdo da Obra, quando a Ilusão recai igualmente sobre qualquer homem, que o fenômeno artístico se modifica, e distingue-se da forma como apresentava-se antes. Tudo se altera com o advento da imagem virtual, criada recentemente pela manipulação dos recursos tecnológicos.

A imagem digital de um peixe, vista num monitor, será sempre percebida igualmente em sua integridade, por qualquer homem contemporâneo?

Será que ela dirá seu conteúdo, até mesmo para o homem isolado deste tipo de representação tecnológica?

Chegamos a Ilusão plena?

Talvez...

Mas antes de discutirmos essa questão, precisamos entender em que contexto o artista também se modificou diante de tais recursos.

Será que a conquista do espaço virtual modificou o artista em seu desejo de realizar a tradução da Beleza?

Por que este desejo estaria relacionado às mudanças que os meios técnicos sofreram?

Aparentemente, não há como dissociar a apreensão sensorial, dos meio disponíveis para representá-la. Daí, toda transformação nos meios geraria uma alteração na percepção do que pode ou não ser representado pelo artista.

No entanto, o modelo ideal, que condiciona o gesto criador, não é suficientemente rígido para permitir uma só resposta. Podemos arriscar, que no mais das vezes, estas transformações vem para cercear práticas artísticas consideradas antigas, em detrimento das inovações do aparato técnico, que desvelam a cada tentativa do artista, uma nova chance para saciar sua ânsia de realizar a obra.

Mas de que modo o meio pode condicionar a apreensão do desejo criador se ele só é posto em uso posteriormente?

O que quero dizer, é que nada pode limitar o desejo de representação a parâmetros fixos, de modo que a descoberta que vem à luz sob outros meios, ganha contornos novos incessantemente, de outro modo, nem poderíamos chamá-la de descoberta verdadeiramente. E durante esse processo criativo investigativo, as formas desveladas são por si mesmas muito mais eficazes para o curso que a obra tomará, do que a própria ideia original de onde partiu o gesto. Seria algo como a obra da obra, pois a cada experimentação, a cada nova investida, o modelo sofre mutações para ajustar-se a esse todo. E isto se revela igualmente na realização artística, desde a primeira mancha pré-histórica numa caverna até chegar ao nosso click do mouse contemporâneo.

Mas esta seria uma condição inevitável ou natural?

O artista é refém da técnica ou é senhor dela no momento da criação da Obra?

Na verdade, o foco do artista nunca dependeu totalmente do meio que dispunha para executar sua Obra, ao menos, não há razões para esta limitação, mas, pelo contrário, ao nos deparamos com Obras colossais, como as esculturas de Michelangelo, por exemplo, é difícil duvidar do quanto este gênio realmente estava seguro de sua realização antes de golpear o mármore. Contudo sua segurança se encontrava enraizada profundamente em seu desejo criador, sublimando qualquer dúvida quanto ao modo de realizá-la.

O desafio diante da realização da Obra, já é parte da primeira etapa do processo criativo, sobre isto não precisamos ter dúvidas.

Mas em que instante a Ilusão permeia esse empreendimento criador?

Ora, durante todo o tempo, pois o artista parte de uma impossibilidade:, ele pretende consagrar um instante expressivo na matéria amorfa, ignorando os limites físicos, e inaugurando um novo tempo com este espaço, ele desoculta o espaço extraordinário, como dissemos antes. O gesto iluminado na obra escultórica está absolutamente transcorrendo em nossa apreensão, e permanece petrificado a despeito do que sentimos como verdadeiro! Isto é extraordinário!

Temos que ter em mente, que o termo extraordinário visa a distinção do que é o ordinário, no sentido do que não se insere na ordem do dia comum, e transcende o sentido que tem a produção de bens de consumo, intrinsecamente efêmeros por necessidade mercadológica. A Obra situa-se no extremo oposto dessa natureza de objetos, e só pode nascer de uma necessidade igualmente extraordinária, que abranja esse sentido transcendental, que é imanente na Arte.

Dizemos que a Ilusão recai sobre todo artista e sobre a Arte, porque é justamente esse universo que o coloca em questão sobre o que é a realidade.

De fato, nossa noção de realidade se funda, quase em sua totalidade, na crença de que conhecemos as coisas tal como elas são. Mas o que diríamos acerca dos que ignoram nossas descobertas modernas, hoje tão corriqueiras, como as pilhas ou a luz fosforescente?

Não precisamos recuar muito para percebermos que a realidade atual era uma ficção, ou talvez nem isso sequer, pois nem havia a possibilidade de imaginar tais conquistas, já que o desejo que as motivou não pulsava nas veias humanas.

Será que é possível crer que alguém desejasse um aparelho para exercitar a corrida e que não ocupasse espaço na casa? Um esteira pareceria uma boa ideia em 1800? Só se servisse para transportar cargas pesadas talvez...mas para alguém correr sobre ela? E assim, o mesmo poderíamos dizer sobre inúmeros objetos que hoje são imprescindíveis, como o abridor de latas, as lâminas descartáveis, os filtros de papel para o aspirador de pó, etc, etc e etc...

O desejo humano se transformou, e com ele, a realidade assumiu contornos definidos para a época e para as crenças vigentes.

Então, o que é a realidade de fato?

Esta é uma pergunta que não impede o artista de crer que contribui de algum modo para desocultar faces misteriosas do espírito humano, e abre seu Cosmo para todos, como se ele fosse verdadeiramente o de todos nós. Sua obra é Iludir-se de que não há ilusões mas apenas realidade.

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